A memória de Manuel Joaquim pelos olhos de Ana, sua bisneta

«BISAVÔ EM COMBATE

Na velha caderneta militar, consta que a 23 de Setembro de 1893, na freguesia de Achete, concelho de Santarém, nasceu Manuel Joaquim. Dentre os seis filhos de João Joaquim e Mariana da Piedade, o militar licenciado pela velha caderneta amarelada, fruto dos anos que por ela passaram e do pó que nela foi repousando, assentou praça em 28 de Julho de 1913.

Tratava-se de uma família pobre de camponeses, como tantas outras dessa altura. Este mancebo esteve seis anos na tropa. Seis longos anos que começaram por um "treino" em Angola, onde, com tantos outros, procurou defender as nossas antigas colónias. Seguiu-se um breve regresso a Portugal, como que para se despedir, após o qual foi enviado para a verdadeira guerra. Inicialmente em França, esteve em várias frentes. Mais tarde, na batalha de La Lys, na região da Flandres, na Bélgica, decorrida em Abril de 1918, na qual o exército alemão lançou um dos mais fortes ataques ao exército português, provocando o maior número de baixas militares nacionais depois da longínqua batalha de Alcácer Quibir em 1578, o nosso Manuel Joaquim foi feito prisioneiro no dia 9 de Abril de 1918.

Desde então, e durante dez longos meses, a sua terra natal não recebeu qualquer prova de vida. Foi nessa altura que reapareceu à família já enlutada depois de ter desembarcado em Lisboa, no dia 28 de Janeiro de 1919. Consta que as pessoas o receberam como quem vê um fantasma. Pouco tempo depois, casou e teve um filho, de seu nome Miguel Joaquim. Viveu até ao fim sem grande trauma. Apenas um ódio de morte ao povo que o prendeu. Recordava vezes sem conta que, quando estava preso, passava uma a duas horas no único sítio onde lhe permitiam ir sozinho¼ a casa de banho. Como castigo pela demora, chicoteavam-no, apregoando na língua deles um dialeto que lhe soava assim: "iá-iá-iá-porca-medonha-velhaca-maria". Já tentamos perceber o significado destes sons por ele decorados, sem sucesso. Ficará assim na nossa memória.

Homem corajoso até ao fim, reza a história que, num dia solarengo, estava a trabalhar na horta, quando ouviu um grito de desespero provindo da casa vizinha. Quem gritava era a mãe do seu futuro compadre por ter deparado com o filho dependurado pelo pescoço, tentativa de suicídio motivada por vicissitudes novelescas (consta que tinha engravidado a namorada). Não teve meias medidas. Salvou o amigo , cortando a corda com a sua inseparável navalha. O seu amigo e vizinho teve assim a vida pela frente para casar com a dita namorada, criar o filho que ainda era rebento nesse dia, e ainda ser padrinho do Miguel Joaquim. Até que, muitos anos mais tarde, já com a vida toda vivida, o filho criado e o nosso protagonista também enterrado, veio terminar o que começara cedo de mais. E lá se enforcou.

Quanto ao nosso Manuel Joaquim, morreu de velho, aos 76 anos. A comprovar que veio de uma família rija, o seu irmão mais novo faleceu há uns anos, de muito velho, com 103 anos. Antes, ainda brindei à sua saúde na festa dos 100 anos.

Ficou o Miguel Joaquim. Rijo como os outros. Atualmente com 86 anos, sofre de tensão alta e reumatismo. Ainda acompanha o filho na apanha da azeitona e na vindima. Muito gosta de passear na caixa do seu velho trator, ao lado da neta e do bisneto, conduzido pelo filho. Do Miguel Joaquim, nasceu o Vitor Joaquim. Saíu rijo, como se esperava. De sobrolho franzido, apregoa estas histórias a quem o ouve e ao vento. Para que nunca se percam no tempo.

Do Vitor Joaquim, finalmente nasceu uma menina. Ana Joaquim. É o meu nome. Rija e de sobrolho franzido, pois claro. Ciente das raízes, que carrega com orgulho.

Abro o outro documento que o meu pai me enviou. É a fotografia do Manuel Joaquim. É uma fotografia a preto e branco igual a tantas outras da época. A jarra de flores do lado direito em cima de um barroco pedestal. A cadeira manuelina à esquerda na qual repousa o antebraço de mão pendida. A pose inexpressiva, de perna cruzada apoiada no bico do sapato. Porém, a sua inexpressão facial denota pertencer a um indivíduo fora de contexto da época. Talvez seja o sobrolho discretamente franzido, que ainda há pouco vi no espelho e há uma semana no meu pai. Talvez seja o à vontade que transmite, como se aquela fosse a posição mais confortável do mundo. Talvez sejam as calças, impropriamente justas até aos pés, calçados por uns sapatos que parecem as sapatilhas que calçam os jovens de hoje em dia. Ninguém me tira da ideia o que me vem à mente de cada vez que vejo esta foto. É, sem dúvida, o Omar Sharif de Achete, que se coaduna tão bem com a lenda de herói irreverente do início do século passado nascido na pequenina aldeia chamada Dona Belida dessa freguesia do Ribatejo profundo.»

Ana Isabel Vieira Nobre Joaquim
Outubro de 2014

Informação Adicional

Autor - Relator
Ana Isabel Vieira Nobre Joaquim, Margarida Portela
Testemunha - Contador
Ana Isabel Vieira Nobre Joaquim

Intervenientes

 

Nome
Manuel Joaquim
Cargo
Soldado

Teatros de Guerra

 

Teatros de Guerra
França

Mais informações

 

Data do início da história
1914
Data do fim da história
1919

Direitos e Divulgação

 

Entidade detentora de direitos
Instituto de Historia Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova Lisboa – Portugal
Tipo de direitos
Todos os direitos reservados
Link para acesso externo
http://www.portugal1914.org/portal/pt/memorias/historias/item/7336-a-memoria-de-manuel-joaquim-pelos-olhos-de-ana-sua-bisneta

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